domingo, 28 de setembro de 2014

À esquina

Uma sensação quase sublime passou por mim ontem, à esquina. Esperava alguns amigos para irmos a um show de jazz. A noite era fresca e relativamente pacífica em seu ritmo de cidade. Percebia-se nitidamente que o dia acabara. As pessoas passavam por mim voltando do trabalho ou da escola, ou seja lá de onde voltem ao fim do dia, quando se dirigem para casa, com os olhos imprimindo aquela expressão simultânea de cansaço e alívio.

Meus amigos estavam atrasados e meu calcanhar inflamado doía levemente por estar ali, em pé. à espera. Talvez já tenha me acostumado ao incômodo dessa dor, mas o fato é que ela não perturbou meus sentidos, permitindo que observasse a esquina e seu movimento "natural". Me dei conta de que ninguém fica parado à esquina, observando. Estar à rua é quase sempre estar indo ou vindo. E aqueles minutos ali, me permitiram ver o botequim do outro lado da rua, os carros passando no cruzamento da Passagem com a Arnaldo Quintela, pessoas suspeitas, pessoas familiares, estranhos... A cidade acontecia ali. Os novos arranha-céus contrastando com os velhos prédios e sobrados, essa mistura tão nossa entre o novo e o velho...

Pensei na vida, no meu corpo cheio de limites, nos amores que se foram, na juventude sideral e, de repente, me veio uma sensação de completude. Uma coisa paradoxal. Uma sensação plena de ser e estar no mundo, através da falta, das ausências, das impossibilidades... Me dei conta de que esses fracassos me constituíam numa inteireza. Pela primeira vez na minha vida me senti pleno na falta. Parado ali, à esquina, no outono de minha vida, não havia nada mirabolante, nenhuma paixão soberana, nenhum desejo explosivo.... apenas a inteireza do ser resignado com todos os seus buracos.

Então, meus amigos chegaram, demonstrando preocupação comigo — eles tomam conta de mim em minha solidão — e, aflitos, me perguntaram se esperara demais, e se desculparam por terem atrasado. Respondi que estava tudo bem com uma sinceridade profunda.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Degredo

Será adeus o que eles dizem?
Ali, à esquina dos desencontros
os dois que olham sem se ver.


Será o fim do infinito?
Sem tempo, sem fundo, o que finda?
Estranhos que se assombram
depois de tudo e de tanto juntos.

Além do quanto fizeram, ficou
também o que calaram, ali,
à esquina dos esquecimentos
ali, onde acaba a rua do adeus.

Estarão dizendo o que sequer se supôs?

Após as guerras, as feridas
e o degredo em terra alheia
onde o esquecimento mira
a paisagem que ficou além mar

E o vento varre os vultos que,
sem volta, se perdem para sempre
sem chão, sem teto, sem amor, sem nada.


Rio, 28 de julho de 2014

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Empata-foda

Querida amiga, outro dia pensava sobre nossas predileções literárias e me dei conta do peso que esse gosto, tão pessoal, tem como parâmetro amoroso entre as pessoas. Você, por exemplo, gosta do poeta V. e eu sempre tive uma certa preguiça em relação à produção metafísica dele, preferindo seu lado mundano e mulherengo. Portanto, V., para mim, é um poeta parcial, pois não enveredei por suas inquietações sobre Deus e o Cosmos. E, veja, não é que não goste de V.. Apenas não senti o impulso de lê-lo nessa vibração espiritual, preferindo seu lado secular, sua bossa nova, seus amores carnais. Nessa onda ele é genial. Mas é essa divisão que me impede de elegê-lo como predileto. E me pergunto se não é essa a verdadeira razão do nosso desencontro. Como um planeta interceptado na quadratura de um signo incompatível ou coisa que o valha. Por amor a você, até atravessaria as veredas de reflexões patafísicas de V. na esperança de ver abrir em mim uma iluminação reveladora do lirismo que antes não percebia, e, por meio de V, exibisse orgulhoso todo o meu amor por você. Mas você mesma sentenciou: "Você não gosta de V.", me disse outro dia, tão casualmente quanto alguém que se resigna a uma diferença abissal e incompatível. Tremi de medo de que não fôssemos mais o que quer que somos no campo do afeto, esse gostar que fica aquém do que quero e além do que você suporta. Um limbo cheio de aventuras perigosas. O seu poeta V. acabou ficando entre nós, veja você, como um empata-foda, o que me fez escrever esse poema pra você, querida amiga:

Queria ser um poeta
Como aquele que vive em teu peito
E repetes os versos d'alma
Queria poder estar tão dentro de ti
Habitado de teus sonhos
Como, sem saber, está o poeta
Aquele que vive em teu peito
Sem perceber-te entregue
Como entregue me ponto a ti
Queria ler teu corpo
Como teu poeta recita versos d'alma
Conjugaria teus músculos
E aprenderia teu beijo
Como quem decora poesia

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Desigualdades afetivas

Querida amiga, não sei por onde anda o seu sorriso blasé. Não a vejo mais. E, como todo narcisista que se preza, concluo que o sumiço se deve a mim. Esse "eu" tão pleno de funduras e que ultimamente anda assustador. Queria simplesmente ver você. Espiralar assuntos estratosféricos em longa conversa cervejada. Mas você some e eu não tenho energia pra lhe buscar, ligar, enviar mensagens, emails etc. Você é imune à tecnologia dos nossos dias assim como a meus apelos. Como não sei a razão de sua ausência no planeta, atribuo a mim mesmo. Afinal, ainda acredito que tudo neste sistema solar orbita ao meu redor. Desrespeito, assim, suas coisas, os seus processos. Ignoro a angústia que a atravessa neste instante e que não sou capaz de perceber, ouvir, opinar. Eu que sempre estive bem próximo. Atento, ligado. Mas nesses tempos que correm, como dizem os portugueses, sou eu quem anda pelo vale da sombra da morte. Mal enterrei meus mortos, ainda tenho pesadelos e sou devorado por um vazio atroz. Soletro solidão o tempo todo e a respiração do dia anda pesada. Portanto, sou de nenhuma serventia para suas coisas agora. Sou eu quem clama por ajuda. Mas entendo o silêncio. Sei que nesse momento estou um poço sem fundo. O afogado que periga afundar o salva-vidas.

Fui treinado pra compreender a reciprocidade, mas devo ter faltado à aula. De qualquer modo, tenho a impressão que a dádiva nunca tem uma contrapartida equivalente. É sempre desigual. Você pode receber duas maçãs de presente e retribuir, depois, dando duas maçãs. Ainda assim a troca não terá sido equivalente. Pois nessa contabilidade entram fatores que estão além dos objetos. Há o valor que se dá ao gesto, por exemplo. O ritual da entrega e o quanto de obrigação, afeto real, polidez estão no ato também influenciam a conta. E é essa desigualdade de afeto trocado que torna as relações tão singulares. Temos nossa dose de desequilíbrios afetivos em nossas trocas. E ponto. Nos vemos quando for possível, depois que eu dobrar essa esquina.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Fogo adormecido

Por que perturbar um amor adormecido?
Por que lembrar noites heróicas
em que nos digladiamos deliciosamente
fazendo do gozo, êxtase?

Hoje, navegas por outros mares
falas outros idiomas
Inventas nova vida.
Não faz sentido abalar a ordem
e despertar a fome
que a saudade aumenta.
Se fomos felizes, o fomos então.

Deixar quieto é arte serena
desassombrar o amor
e cultivar lembrança em paz
antes que o sono acorde.

Rio, 28 de janeiro de 2014.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Velha casa

A casa da gente reflete o estado do nosso espírito. Essa é uma afirmação óbvia, mas seu sentido concreto continua a me impressionar. Minha desorganização interna e descaso estavam refletidos na bagunça do apartamento. Os livros acumulados pelo chão, uma biblioteca que não se fez e espalhou-se como uma inflação, tomando partes físicas do chão e diminuindo o espaço, físico e mental. A casa se vinga e vai nos sufocando. A passagem de Marta, com sua arguta observação para além do normal, foi o impulso que precisava para mudar. Investi uma grana em estantes, tirei as coisas do chão, separei dezenas de livros para dar. Joguei fora papéis, coisas as mais diversas e, de repente, a casa se abriu novamente para mim. Joana já havia me dito que a casa reage a essas coisas. E é verdade. Ainda estou no processo, mas já sinto vontade de trazer as pessoas para cá novamente. Sobretudo ela.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Mundo jaburu

Não quero escrever sobre o mundo jaburu. Aquele universo composto de coisinhas do cotidiano a serem resolvidas. As contas a pagar, as obras por fazer, o chefe chato no trabalho e por aí vai. Às vezes, deixo que isso ocupe um espaço precioso em minha mente e afete o meu humor. Preciso ficar zen, até mesmo para lidar melhor com esses perrengues. Mas, me obriguei a escrever o mais frequentemente possível aqui e ontem foi um dia de pequenas irritações. Deixo então os dedos deslizarem pelo teclado ao fluxo do pensamento, como uma espécie de ritual mesmo para pôr pra fora esses pequenos aborrecimentos e limpar a mente para as coisas mais vitais. Essas coisas menores me distraem dela, por exemplo. Talvez seja até mesmo uma espécie de mecanismo psíquico de defesa mental contra as grandes perdas que vivi recentemente. Não sei. Mas é preciso pôr as coisas nos seus devidos lugares, nos seus tamanhos. Bom dia!

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Odisseia

Uma brisa atravessa a casa. O mundo desperta aos poucos. O trânsito invade pela janela e coloca a cidade na sala. Ouço o ronco de motores e começo o dia cheio de esperanças. Estou leve e solto no mundo, como um pássaro. De repente, me lembro dos meus primeiros dias de escola, já velho, aos 7 anos. Em meio ao terror do novo, hoje consigo vislumbrar também um orgulho por vestir uniforme e me situar na vida, com minha pasta, material escolar. Tudo mudara, subitamente. E tive certeza de que começara a vida adulta. O tempo ganhou amarras, prazos. Nunca mais aquele contínuo sem fim, escorrendo pelas horas, pelos dias. Me pergunto se a aposentadoria seria uma volta a esse estado, antes da morte. Uma espécie de Ítaca, que ficara pra trás, como uma paisagem que permanecera intacta à minha espera, eu, uma espécie de Ulisses, voltando da guerra para sua Penélope, para sua casa, cheio de cicatrizes e a vida por contar.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Coringa

Me lembro de seus membros um a um, movendo-se ao ritmo de algum som transcendental naquele salão imenso, escondido nos fundo de um prédio velho. Só nos dois. Você entregue num êxtase próprio e eu, hipnotizado, apaixonado, acompanhando cada gesto, cada passo, cada movimento de seus quadris, pernas, tronco... Peguei então a câmara e entrei na dança. Minha dança, aquela que, descoordenado, permitia me aproximar. Cada um na sua arte, mas combinando. Você nem se incomodou. Permaneceu movendo-se, mergulhada no êxtase que o corpo lhe proporcionava. Fotografei e fotografei na mesma sintonia, no mesmo frenesi. Numa época pré-digital, com filme de película, em rolos com fotogramas limitados. Depois levei para revelar. E, claro, com tanta movimentação, luz oblíqua, baixa velocidade, a maioria das fotos se perdeu em borrões desfocados. O que até fez um estilo meio psicodélico, fotos em movimento, insinuações. Mas um fotograma captou o que queria. Um em que o dedo coincidiu com o enquadramento, a composição, a luz e, acima de tudo, sua expressão. Seu êxtase. Seu amor ao mundo. Você íntegra neste planeta. Conectada com o cosmos. Inteira.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Jardineiro fiel

Quando é pra valer, o ar entra diferente no peito. Ela olha com aquele olhar sacana, meio perverso, meio sedutor. São mudanças sutis demais para a percepção masculina, acostumada a grandes golpes e penetrações. Nesses casos, não é assim, pelo menos inicialmente. É preciso ir com muita calma. É uma flor volátil que se apresenta no instante e, num zás, volta a se fechar. Aprendi a reconhecer. E, naquele dia, raro, você estava ali, aberta, os pés sobre a cadeira, solta, rindo, pilequinho. O ambiente não ajudava. Muita gente. Muita conversa, trazendo o mundo pro chão. Chamando à realidade. Um saco essas desconjunturas. Quando o meio ambiente implica. Dificulta o fluxo do desejo. Nesses casos, há que se agir presto, mas sabendo que qualquer golpe mais forte, a orquídea morre. É preciso mão verde para o jardim das delícias. Quanto ciência!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Cantiga de roda

Há 30 dias você se foi pra sempre. Trinta dias hoje. Nesse instante, em que sua lembrança vem, suave, com a manhã que desponta, amena, mas intensa, como a saudade, que vai se ajeitando nos espaços do tempo. Do lado de cá, a solidão nunca tão intensa. Uma solidão que vem de funduras abissais. Busquei a amiga, mas ela não pôde sequer perceber do que é feito esse mundo. Tudo bem, ela não poderia. Não sem ter um parâmetro ao nível do sentimento para o exercício da comparação, da relativização, da tradução e do entendimento, enfim, do outro. O grande desafio do ser humano. Entender-se com o outro. Então sigo só. E é dura a solidão. Mas sinto os músculos da saudade se enrijecendo, o pulmão buscando ar com mais ímpeto. Há uma esquina à vista e me lanço sem pensar, passos firmes, só, à espera de dobrar o rumo. Mas você vem comigo. Como na canção de roda que deixou de presente, para evocá-la nesses momentos. Então entoo a primitiva melodia de nossa história, de nossa raiz-família e dou sentidos ao mundo. Você comigo, meu amor.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Saltitos de Nijinski

Os dias andam embaçados. Muito vapor e altas temperaturas. Preguiça e torpor. Ando pelas ruas do bairro vendo elefantes em fila, enquanto tento chegar ao céu, enquanto as crianças dão saltitos de Nijinski, como diria Torquato. E o tempo, enquanto isso, derrete, transformando-se numa massa disforme, feita de memória, saudade e desejo. Tento não pensar nela, na máscara de ausência que ela vestiu outro dia. O olhar distante, ciscando sem pouso. Em meio a tantos amigos, em meio a tantos desencontros, desperdicei ideias, mas resguardei sentimentos. Me empedrei. E, vestido de muro, sigo na cidade, e a cada esquina espero um grande encontro. Ando de braços abertos. Faço caminhos certos pelo bairro, em meio à profusão de prédios, cada vez mais sufocantes. Um após o outro, monstros de concreto chegam, aumentando minha solidão. E penso nela. Tão distante, tão ausente. E me pergunto: quem será? Quem foi aquele ser que descruzou olhares comigo. Não terá suportado a intensidade? Ou simplesmente não quis cutucar a onça de perto. A própria fera que leva dentro de si. E com tanta família, tantos amigos, tanto conhecidos, tantas pessoas outras, crianças, saltitos de Nijinski. Me empedrei. E sinto o sangue parado, denso, concreto, abandonado à rua. Então abro os braços à esquina, pronto para me entregar inteiro ao encontro com ela, que está perto, logo depois do vento que me desfaz, poeira. Pó.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Gordura no fígado

Querida amiga, toda a imprecisão que a criatividade nos cobra sempre foi uma afronta às mentes racionais. Talvez daí venha todo esse movimento neobarroco que vemos aqui e ali, nos meios de comunicação, nas artes, nos livros. Pois é justamente o caminho tortuoso do sentimento, do impulso, que nos conduz vorazmente por nossas paixões. Mas, covardemente, quando a coisa degringola, quando o tudo se esvai em nada, recorremos à razão, calculamos e rogamos ao deus-ciência pelos esquemas, pela lógica, que nos salve das situações inconclusivas. Escrevo essas linhas pensando em você, lembrando das projeções narcisistas que estão por trás de toda paixão, um reconhecimento inconsciente de si no outro. E o outro, feliz de receber todo esse elogio monumental, toda essa intensidade afetiva, faz sua parte no jogo, fechando o ciclo do desastre amoroso. Ou não. Ontem, reconheci em você a maldade das crianças, aquele sadismo inocente, "natural". Estava ali, disfarçado de descaso, de distância. Mas consegui ver. E foi bom, porque me ajudou a definir a situação. Fenomenologicamente. Vi o nó de nossa intersubjetividade. A confusão. O engano se repetindo. E lembrei do refrão de uma canção de Manduka: "Tire suas unhas de mim! Antes de nada, estão me machucando!". Terei aprendido a lição? Não sei. A imprecisão impera o coração criativo, e, como dizia Vinícius, não é possível amar sem sofrer. Mas me viro. Descubro o mundo, esse outro canto do universo, onde a magia se dá sem provas de fogo, sem ritos de sangue. O encantamento simples do querer bem.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Pássaro


Esqueci meu superego no banheiro. Aproveitei um segundo de distração e escapei pela janela, dizendo que ia comprar leite. Fui para o bar ver se encontrava meu amor. Ali, sem a supervisão onipresente, era o  lugar e a hora para um beijo. Mas ela me olhou com olhos de professora, madre superiora...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A vida como ela é



Você chega; me levanto, cortês e ansioso. O panamá na mão. Um abraço trêmulo e nos sentamos. Você diz: "Que calor!"; peço uma cerveja. Os olhos se cruzam, envergonhados, meio sem jeito. Trocamos frases cotidianas. De chegada. Assuntos alheios, mundanos. Mas os olhos dizem mais. Perscrutam minuciosamente. Sem deixar escapar nada. Mas são as palavras que vão abrindo as portas, criando trilhas; e somos eloquentes. A cada frase, a conversa adensa e nos aproximamos mais. Apesar da configuração difícil, quase impossibilidade, por outros laços em que nos atamos. Mas também descartamos a indiferença. E somos honestos em reconhecer, sem dizer, o desejo. A cerveja chega. Você diz ao garçom: "Obrigada!" Nos soltamos mais, aliviados pela situação cada vez mais definida em suas imprecisões. Há um campo de possibilidades, vasto, apesar dos laços alheios. "Vou ao banheiro", você diz, após o enésimo copo. Espero sua volta, como o tigre espreita a gazela na floresta. Quando chega, gesto felino, pego-a pela mão com firmeza; você para. Me levanto, ansioso. Pouco cortês, mas incisivo, ignoro as etiquetas, inclino para o beijo, enquanto puxo seu rosto. Vejo um pânico fugidio em seus olhos, mas, por fim, você aceita a investida e se entrega. O tempo para, enquanto sinto esse primeiro ato de amor, apesar da culpa. A obscenidade está fora de nós; não no beijo. "Sou puta?", você sussurra constrangida. Aperto seu corpo contra mim, como quem diz que não. "Te amo!", digo, como se isso fosse suficiente. Não é. Nos sentamos novamente e brindamos a vida como ela é.  Me levanto e digo: "Minha vez!" E parto para o banheiro, exíguo, infecto, onde entro pisando em nuvens.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Serafim

Ontem jantei no Serafim, depois que saí do jornal. Fui com Ju e, lá, encontrei Madá e Solange. Formamos um grupo estranho, mas interessante. Além disso, o velho Serafim está muito diferente em relação à época que o Juca comandava a casa. Mas dividi um farto prato de salmão, batatas coradas e arroz e brócolis com Madá. Não foi um manjar dos deuses, mas deu pro gasto. Alguns rodadas de caldeireta e a conta deu R$ 60. Uma pequena extravagância, que não dá para se repetir com frequência. Preciso economizar o máximo possível, para reequilibrar o orçamento.

Cheguei em casa, li um pouco e vi TV, antes de apagar. Tenho acordado cedo e sinto sono durante a tarde. Meu fuso horário está que nem barata tonta, tonta, tonta. Festas de fim de ano, luto, hóspedes em casa e folga me fizeram perder a noção dos dias, da rotina. Cada dia tinha seu próprio tempo. Bem, agora vou voltando à rotina aos poucos. De qualquer modo, se tudo correr bem, devo passar a trabalhar no horário da manhã, o que seria ótimo para minha saúde.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Clima louco

Hoje acordei mais leve. O noticiário me informa sobre as temperaturas gélidas nos EUA, em alguns lugares caindo a 50 graus negativos e, segundo as autoridades, com sérios riscos de morte por congelamento para quem se aventurar no vento que vem da região polar. Na costa atlântica da Europa, o mar se bate contra o continente com ondas furiosas, com mais de dez metros de altura. Há registro de vários desaparecidos, levados pelo mar. Aqui, a temperatura, enfim, amenizou. O calor continua forte, mas há uma brisa e a sensação térmica caiu para uns 30 e poucos. No fim de semana, a sensação chegou a 51 graus.

Todas essas notícias me lembram os alertas de minha avó. Preocupada com os presságios do Apocalipse, ela sempre suspirava angustiada, diante do noticiário da TV, quando chegavam informações sobre desastres naturais e condições climáticas. Isso bem antes das preocupações ecológicas com a saúde do planeta. Talvez ela tenha razão e estejamos caminhando para o fim dos tempos. Não é um pensamento agradável, principalmente porque há coisas que podem ser feitas para amenizar a destruição do planeta.

Enquanto isso, a vida segue por aqui. Procuro estar atento às coisas, minhas coisas. Ao equilíbrio ecológico do corpo, da casa... pleiteei uma mudança de horário para tentar uma rotina mais saudável. Quem sabe. A ver.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Se é para dizer adeus

Negra é a noite destes dias.
O calor engole o cotidiano
e o verão, antes tão meu,
torna-se esse ser estranho,
súbito arrepio a estremecer.

Em contraste, a luz ofusca
o dia que nasce, quebra.
E as manhãs incendiadas
são como o vazio afiado
que a morte nos deixa.

Vou acostumando os olhos
a enxergar nesses extremos.
É como respirar submerso
encho o pulmão de sopro
que vem da tua lembrança
apesar das mãos que sufocam.

Rio, 5 de janeiro de 2014.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Sobre perdas

Meu pai morreu dia 11 de novembro de 2013. Passou tranquilo, dormindo, depois de uma vida bem vivida até os 80 anos. Reclamava um pouco da solidão nos últimos anos e se empedrara num mundo todo seu, onde as coisas mais básicas de que precisava estavam ao alcance da mão, exceto, talvez, a companhia inexistente de alguém ao lado. Inclusive o piano Steinway & Sons, onde compunha seus temas. Um câncer raro o levou. Não fosse isso, creio que viveria até os 100 anos. Era forte e saudável. Há muitos anos não bebia nem mesmo a cervejinha. Apenas um aperitivo após o almoço. Quando foi avisado do diagnóstico, em agosto de 2012, o médico não escondeu as perspectivas sombrias, informando inclusive as estatísticas de sobrevida das pessoas com esse tipo de tumor: de três a seis meses, após o diagnóstico. Ele superou, portanto, todas as expectativas e seguiu, inclusive apresentando uma melhora. Mas dizia, em tom forçadamente casual, que cruzaria o Rio Jordão em abril. Quando estive com ele em novembro de 2012, numa Nova York gelada, indaguei de onde havia tirado aquele mês. "O médico falou", respondeu. Então escrevi pra ele o poema que segue:

Quando abril chegar
E o sol mudar o arco de sua curva
Talvez não sejas mais
Do que memória e falta
Dependerá do sonho de vida
Que costuras agora no tecido do dia
Para cobrires tua existência

Quando abril chegar
Talvez seja tarde demais
E o tempo cumpra os presságios
Que murmuras hoje
Dependerá da vida que sonhas
A vontade de mudar o arco da curva
Que o sol desenha no espaço.

Em fevereiro estive novamente com ele. Me parecia mais saudável, embora não houvesse tratamento possível. O tempo se esgotava silenciosamente. Ainda assim recuperamos um pouco do humor. O café da manhã era o nosso melhor momento juntos. Sempre fora e, agora, tinha um valor especial, com a ideia de despedida. Eu fazia o café forte, como ele apreciava e comíamos conversando, contando histórias. Um dia, seu humor estava tão pra cima, que posou para mim com chapéu de Tupac Amaru e máscara sandinista.


Deixei-o com a promessa de voltar. Mas não consegui. Em novembro de 2013, na madrugada do dia 11, uma segunda-feira, ele atravessou o rio. Foi-se dormindo. Ao que consta, não sofreu. Durante todo o processo, só foi sentir dores nos últimos dias, quando recorreu à morfina.

Foi-se o homem ficou o mito. O grande artista, o compositor, o músico, multi-instrumentista. Obituário nos jornais. Organizamos agora uma expedição para cumprir seu último desejo: jogar suas cinzas no encontro das águas do Solimões e Negro, onde nasce o Rio Amazonas.

Ainda sob o impacto dessa perda, no dia 17 de dezembro foi a vez de minha mãe. Se a morte de meu pai foi vivida a distância, a da minha mãe foi sentida momento a momento, ao lado dela. Do primeiro dia em que foi internada com falta de ar e dificuldade para respirar, até a madrugada em que ligaram da clínica para avisar que ela havia passado. Enterramos em 12 horas. Não deu para avisar ninguém e, mesmo assim, compareceram ao São João Batista uma boa centena de pessoas. Amigos dos três filhos e as amigas dela. Umas donas arretadas, bossa nova, de humor mordaz.



Minha mãe não era artista. Era uma pessoa simples, que sofreu muito na vida, mas nunca deixou que isso tirasse sua leveza. No dia mesmo em que a levei ao hospital, quando fazia 40 graus sufocantes e ela mal respirava, ao descer do táxi, agradeceu, simpática, ao motorista. Impossível pensar que estaria entrando na clínica para não mais sair com vida. Morreu uns dez dias depois. E ainda me recupero do calvário que foi conviver com UTIs, médicos, enfermeiros, burocratas de hospitais e cemitério.

Agora a vida segue. Sinto a dor dessas perdas irreparáveis, uma angústia que vem com a sensação de desamparo, mas também me sinto pronto pra seguir em frente, tentando ter a mesma leveza que ela teve enquanto viveu.