domingo, 28 de setembro de 2014

À esquina

Uma sensação quase sublime passou por mim ontem, à esquina. Esperava alguns amigos para irmos a um show de jazz. A noite era fresca e relativamente pacífica em seu ritmo de cidade. Percebia-se nitidamente que o dia acabara. As pessoas passavam por mim voltando do trabalho ou da escola, ou seja lá de onde voltem ao fim do dia, quando se dirigem para casa, com os olhos imprimindo aquela expressão simultânea de cansaço e alívio.

Meus amigos estavam atrasados e meu calcanhar inflamado doía levemente por estar ali, em pé. à espera. Talvez já tenha me acostumado ao incômodo dessa dor, mas o fato é que ela não perturbou meus sentidos, permitindo que observasse a esquina e seu movimento "natural". Me dei conta de que ninguém fica parado à esquina, observando. Estar à rua é quase sempre estar indo ou vindo. E aqueles minutos ali, me permitiram ver o botequim do outro lado da rua, os carros passando no cruzamento da Passagem com a Arnaldo Quintela, pessoas suspeitas, pessoas familiares, estranhos... A cidade acontecia ali. Os novos arranha-céus contrastando com os velhos prédios e sobrados, essa mistura tão nossa entre o novo e o velho...

Pensei na vida, no meu corpo cheio de limites, nos amores que se foram, na juventude sideral e, de repente, me veio uma sensação de completude. Uma coisa paradoxal. Uma sensação plena de ser e estar no mundo, através da falta, das ausências, das impossibilidades... Me dei conta de que esses fracassos me constituíam numa inteireza. Pela primeira vez na minha vida me senti pleno na falta. Parado ali, à esquina, no outono de minha vida, não havia nada mirabolante, nenhuma paixão soberana, nenhum desejo explosivo.... apenas a inteireza do ser resignado com todos os seus buracos.

Então, meus amigos chegaram, demonstrando preocupação comigo — eles tomam conta de mim em minha solidão — e, aflitos, me perguntaram se esperara demais, e se desculparam por terem atrasado. Respondi que estava tudo bem com uma sinceridade profunda.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Degredo

Será adeus o que eles dizem?
Ali, à esquina dos desencontros
os dois que olham sem se ver.


Será o fim do infinito?
Sem tempo, sem fundo, o que finda?
Estranhos que se assombram
depois de tudo e de tanto juntos.

Além do quanto fizeram, ficou
também o que calaram, ali,
à esquina dos esquecimentos
ali, onde acaba a rua do adeus.

Estarão dizendo o que sequer se supôs?

Após as guerras, as feridas
e o degredo em terra alheia
onde o esquecimento mira
a paisagem que ficou além mar

E o vento varre os vultos que,
sem volta, se perdem para sempre
sem chão, sem teto, sem amor, sem nada.


Rio, 28 de julho de 2014

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Empata-foda

Querida amiga, outro dia pensava sobre nossas predileções literárias e me dei conta do peso que esse gosto, tão pessoal, tem como parâmetro amoroso entre as pessoas. Você, por exemplo, gosta do poeta V. e eu sempre tive uma certa preguiça em relação à produção metafísica dele, preferindo seu lado mundano e mulherengo. Portanto, V., para mim, é um poeta parcial, pois não enveredei por suas inquietações sobre Deus e o Cosmos. E, veja, não é que não goste de V.. Apenas não senti o impulso de lê-lo nessa vibração espiritual, preferindo seu lado secular, sua bossa nova, seus amores carnais. Nessa onda ele é genial. Mas é essa divisão que me impede de elegê-lo como predileto. E me pergunto se não é essa a verdadeira razão do nosso desencontro. Como um planeta interceptado na quadratura de um signo incompatível ou coisa que o valha. Por amor a você, até atravessaria as veredas de reflexões patafísicas de V. na esperança de ver abrir em mim uma iluminação reveladora do lirismo que antes não percebia, e, por meio de V, exibisse orgulhoso todo o meu amor por você. Mas você mesma sentenciou: "Você não gosta de V.", me disse outro dia, tão casualmente quanto alguém que se resigna a uma diferença abissal e incompatível. Tremi de medo de que não fôssemos mais o que quer que somos no campo do afeto, esse gostar que fica aquém do que quero e além do que você suporta. Um limbo cheio de aventuras perigosas. O seu poeta V. acabou ficando entre nós, veja você, como um empata-foda, o que me fez escrever esse poema pra você, querida amiga:

Queria ser um poeta
Como aquele que vive em teu peito
E repetes os versos d'alma
Queria poder estar tão dentro de ti
Habitado de teus sonhos
Como, sem saber, está o poeta
Aquele que vive em teu peito
Sem perceber-te entregue
Como entregue me ponto a ti
Queria ler teu corpo
Como teu poeta recita versos d'alma
Conjugaria teus músculos
E aprenderia teu beijo
Como quem decora poesia

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Desigualdades afetivas

Querida amiga, não sei por onde anda o seu sorriso blasé. Não a vejo mais. E, como todo narcisista que se preza, concluo que o sumiço se deve a mim. Esse "eu" tão pleno de funduras e que ultimamente anda assustador. Queria simplesmente ver você. Espiralar assuntos estratosféricos em longa conversa cervejada. Mas você some e eu não tenho energia pra lhe buscar, ligar, enviar mensagens, emails etc. Você é imune à tecnologia dos nossos dias assim como a meus apelos. Como não sei a razão de sua ausência no planeta, atribuo a mim mesmo. Afinal, ainda acredito que tudo neste sistema solar orbita ao meu redor. Desrespeito, assim, suas coisas, os seus processos. Ignoro a angústia que a atravessa neste instante e que não sou capaz de perceber, ouvir, opinar. Eu que sempre estive bem próximo. Atento, ligado. Mas nesses tempos que correm, como dizem os portugueses, sou eu quem anda pelo vale da sombra da morte. Mal enterrei meus mortos, ainda tenho pesadelos e sou devorado por um vazio atroz. Soletro solidão o tempo todo e a respiração do dia anda pesada. Portanto, sou de nenhuma serventia para suas coisas agora. Sou eu quem clama por ajuda. Mas entendo o silêncio. Sei que nesse momento estou um poço sem fundo. O afogado que periga afundar o salva-vidas.

Fui treinado pra compreender a reciprocidade, mas devo ter faltado à aula. De qualquer modo, tenho a impressão que a dádiva nunca tem uma contrapartida equivalente. É sempre desigual. Você pode receber duas maçãs de presente e retribuir, depois, dando duas maçãs. Ainda assim a troca não terá sido equivalente. Pois nessa contabilidade entram fatores que estão além dos objetos. Há o valor que se dá ao gesto, por exemplo. O ritual da entrega e o quanto de obrigação, afeto real, polidez estão no ato também influenciam a conta. E é essa desigualdade de afeto trocado que torna as relações tão singulares. Temos nossa dose de desequilíbrios afetivos em nossas trocas. E ponto. Nos vemos quando for possível, depois que eu dobrar essa esquina.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Fogo adormecido

Por que perturbar um amor adormecido?
Por que lembrar noites heróicas
em que nos digladiamos deliciosamente
fazendo do gozo, êxtase?

Hoje, navegas por outros mares
falas outros idiomas
Inventas nova vida.
Não faz sentido abalar a ordem
e despertar a fome
que a saudade aumenta.
Se fomos felizes, o fomos então.

Deixar quieto é arte serena
desassombrar o amor
e cultivar lembrança em paz
antes que o sono acorde.

Rio, 28 de janeiro de 2014.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Velha casa

A casa da gente reflete o estado do nosso espírito. Essa é uma afirmação óbvia, mas seu sentido concreto continua a me impressionar. Minha desorganização interna e descaso estavam refletidos na bagunça do apartamento. Os livros acumulados pelo chão, uma biblioteca que não se fez e espalhou-se como uma inflação, tomando partes físicas do chão e diminuindo o espaço, físico e mental. A casa se vinga e vai nos sufocando. A passagem de Marta, com sua arguta observação para além do normal, foi o impulso que precisava para mudar. Investi uma grana em estantes, tirei as coisas do chão, separei dezenas de livros para dar. Joguei fora papéis, coisas as mais diversas e, de repente, a casa se abriu novamente para mim. Joana já havia me dito que a casa reage a essas coisas. E é verdade. Ainda estou no processo, mas já sinto vontade de trazer as pessoas para cá novamente. Sobretudo ela.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Mundo jaburu

Não quero escrever sobre o mundo jaburu. Aquele universo composto de coisinhas do cotidiano a serem resolvidas. As contas a pagar, as obras por fazer, o chefe chato no trabalho e por aí vai. Às vezes, deixo que isso ocupe um espaço precioso em minha mente e afete o meu humor. Preciso ficar zen, até mesmo para lidar melhor com esses perrengues. Mas, me obriguei a escrever o mais frequentemente possível aqui e ontem foi um dia de pequenas irritações. Deixo então os dedos deslizarem pelo teclado ao fluxo do pensamento, como uma espécie de ritual mesmo para pôr pra fora esses pequenos aborrecimentos e limpar a mente para as coisas mais vitais. Essas coisas menores me distraem dela, por exemplo. Talvez seja até mesmo uma espécie de mecanismo psíquico de defesa mental contra as grandes perdas que vivi recentemente. Não sei. Mas é preciso pôr as coisas nos seus devidos lugares, nos seus tamanhos. Bom dia!