sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Empata-foda

Querida amiga, outro dia pensava sobre nossas predileções literárias e me dei conta do peso que esse gosto, tão pessoal, tem como parâmetro amoroso entre as pessoas. Você, por exemplo, gosta do poeta V. e eu sempre tive uma certa preguiça em relação à produção metafísica dele, preferindo seu lado mundano e mulherengo. Portanto, V., para mim, é um poeta parcial, pois não enveredei por suas inquietações sobre Deus e o Cosmos. E, veja, não é que não goste de V.. Apenas não senti o impulso de lê-lo nessa vibração espiritual, preferindo seu lado secular, sua bossa nova, seus amores carnais. Nessa onda ele é genial. Mas é essa divisão que me impede de elegê-lo como predileto. E me pergunto se não é essa a verdadeira razão do nosso desencontro. Como um planeta interceptado na quadratura de um signo incompatível ou coisa que o valha. Por amor a você, até atravessaria as veredas de reflexões patafísicas de V. na esperança de ver abrir em mim uma iluminação reveladora do lirismo que antes não percebia, e, por meio de V, exibisse orgulhoso todo o meu amor por você. Mas você mesma sentenciou: "Você não gosta de V.", me disse outro dia, tão casualmente quanto alguém que se resigna a uma diferença abissal e incompatível. Tremi de medo de que não fôssemos mais o que quer que somos no campo do afeto, esse gostar que fica aquém do que quero e além do que você suporta. Um limbo cheio de aventuras perigosas. O seu poeta V. acabou ficando entre nós, veja você, como um empata-foda, o que me fez escrever esse poema pra você, querida amiga:

Queria ser um poeta
Como aquele que vive em teu peito
E repetes os versos d'alma
Queria poder estar tão dentro de ti
Habitado de teus sonhos
Como, sem saber, está o poeta
Aquele que vive em teu peito
Sem perceber-te entregue
Como entregue me ponto a ti
Queria ler teu corpo
Como teu poeta recita versos d'alma
Conjugaria teus músculos
E aprenderia teu beijo
Como quem decora poesia

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Desigualdades afetivas

Querida amiga, não sei por onde anda o seu sorriso blasé. Não a vejo mais. E, como todo narcisista que se preza, concluo que o sumiço se deve a mim. Esse "eu" tão pleno de funduras e que ultimamente anda assustador. Queria simplesmente ver você. Espiralar assuntos estratosféricos em longa conversa cervejada. Mas você some e eu não tenho energia pra lhe buscar, ligar, enviar mensagens, emails etc. Você é imune à tecnologia dos nossos dias assim como a meus apelos. Como não sei a razão de sua ausência no planeta, atribuo a mim mesmo. Afinal, ainda acredito que tudo neste sistema solar orbita ao meu redor. Desrespeito, assim, suas coisas, os seus processos. Ignoro a angústia que a atravessa neste instante e que não sou capaz de perceber, ouvir, opinar. Eu que sempre estive bem próximo. Atento, ligado. Mas nesses tempos que correm, como dizem os portugueses, sou eu quem anda pelo vale da sombra da morte. Mal enterrei meus mortos, ainda tenho pesadelos e sou devorado por um vazio atroz. Soletro solidão o tempo todo e a respiração do dia anda pesada. Portanto, sou de nenhuma serventia para suas coisas agora. Sou eu quem clama por ajuda. Mas entendo o silêncio. Sei que nesse momento estou um poço sem fundo. O afogado que periga afundar o salva-vidas.

Fui treinado pra compreender a reciprocidade, mas devo ter faltado à aula. De qualquer modo, tenho a impressão que a dádiva nunca tem uma contrapartida equivalente. É sempre desigual. Você pode receber duas maçãs de presente e retribuir, depois, dando duas maçãs. Ainda assim a troca não terá sido equivalente. Pois nessa contabilidade entram fatores que estão além dos objetos. Há o valor que se dá ao gesto, por exemplo. O ritual da entrega e o quanto de obrigação, afeto real, polidez estão no ato também influenciam a conta. E é essa desigualdade de afeto trocado que torna as relações tão singulares. Temos nossa dose de desequilíbrios afetivos em nossas trocas. E ponto. Nos vemos quando for possível, depois que eu dobrar essa esquina.